food, art & spirits

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domingo, 28 de agosto de 2011

Goniopsis Cruentata ou Gnossienne

Então eu descobri o aratu.
Um caranguejo especial, de carnes delicadas e extremamente saboroso.Aparentemente, pesca do aratu era uma atividade essencialmente feminina: as mulheres iam para o mangue pela manhã e cantavam canções tradicionais para atraírem os crustáceos para uma armadilha. Si non é vero, é bene trovato, como dizem os italianos. Mas voltando: o aratu me foi apresentado depois de anos freqüentando Recife, pela primeira vez ontem, sob a forma de uma opulenta fritada deste crustáceo de nome elegante, que me lembrou uma peça de Erick Satie (o que gerou o título do post). Eu já tinha comido agulhas fritas, uma empadinha de queijo-do-reino altamente calorica, uma de camarão, meio copo de caldinho, um casquinho de caranguejo
 e aí um chegou este prato, pedido por um amigo. Aviso aos que não me conhecem: não coloquem comida que eu não conheço perto de mim. Se não fui eu quem pediu, eu fico louco, quero pedir um pedaço, quero tocar com os dedos e toda sorte de atos vexatórios, mesmo se a pessoa em questão não for intima. Os que me conhecem já sabem disto, e me oferecem antes mesmo de provarem.
Bem, voltando: o aratu e muito, muito bom. Coloquei no Facebook que ia rever minha relação com os amigos pernambucanos, que ainda não haviam me apresentado esta iguaria. É que tenho uma predisposição para o novo, em termos gastronômicos, que já me causou problemas. Gástricos e financeiros...
Um dia antes, aqui em Recife, tinha comido um peixe com molho de camarões numa versão tão pretensiosa e malfeita, com molho branco, queijo e sei-lá-o-que-mais (achando que ia comer uma prosaica pescada com molho fresco de tomates, cebolas e camarões, como deveria ser), que fiquei matutando: o que leva uma pessoa a consumir variantes tão distantes de sua cultura, se estas variantes não são originais, autenticas e sequer bem-feitas?
Comprovei esta sensação hoje, ainda na capital pernambucana, quando fui convidado a tomar sorvete num local recém-aberto. Cheguei ansioso por sabores como cajá,
graviola, tapioca, mangaba, caju, pitanga. E vi na geladeira: sorvete de fruta do bosque(sim, no singular...), de creme russo( uma coisa rosa-acrilex...), de pistache (uma coisa verde-acrilex), de baunilha (uma coisa amarelo-limão-acrilex...), de cheese-cake...Notei que eram os mais pedidos. O que faz uma pessoa aceitar sabores que não conhece na integra, em detrimento de seus conhecimentos ancestrais? Não, não prego a xenofobia gastronômica, topo tudo neste segmento, lembram? Mas não consigo aceitar a desvalorização dos elementos típicos de uma cultura em prol de uma pseudo-internacionalização. Minha amiga Janete Costa, de quem sempre me lembro, mulher cultíssima, disse-me uma vez: "é mais fácil ser internacional se você tiver consciência de sua regionalidade e características desta." Aqui em Recife e mais fácil conseguir caipirinha de kiwi ou morango do que de caju, que adoro e considero muito mais sofisticada e saborosa.
Por isto que adoro a Neide Rigo, do COME-SE. Profunda conhecedora da culinária brasileira, defensora de uma valorização dos elementos de cada lugar, de seu aproveitamento absoluto, ela tem mais chances de se tornar internacionalmente conhecida do que quem copia valores externos para se sentir up-to-date.
O que o aratu não faz num homem...

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

dividir e multiplicar

Cheguei em casa meio tarde, cansado. Os cachorros me receberam efusivos - aliás, efusivos até demais, parece que eu fiquei dias fora, e não que atrasei-me apenas 40 minutos de meu horário normal. Creio que os cachorros não tem uma noção de tempo muito precisa, vou pesquisar a respeito. Mas, voltando. Já disse aqui que não acho ruim ficar sozinho, meu problema é que fico meio "ligado" quando estou sozinho em casa. Ouço o som no último volume, cozinho, arrumo armários, leio, arrumo armários (sim, de novo...), faço uma montanha de comidas ou de bases para estas - caldos, molhos, recheio de torta, etc.etc.etc...- tudo isto ante os olhares atônitos dos cachorros, principalmente de Leopoldo, que fica sentado entre a sala e a cozinha me olhando com uma cara de "pirou?"...
E tenho uma certa rotina para estes momentos. O primeiro - alguma coisa para beliscar, e algo para beber. Azeitonas ótimas e frescas e cebolinhas em conserva, mais uma (ou seriam três?) taça de suco de maracujá coado com vodka hipergelada e umas gotinhas de angostura.


 Tudo isto porque eu queria usar uma coqueteleira de vidro que comprei numa feirinha de antiguidades, e ainda não tinha usado. Som no alto, qualquer dia a vizinha reclama feio, mas pelo menos meu gosto musical é eclético, de alguma coisa ela vai gostar. Hoje eu andava de Elis Regina a Brad Mehldau, passando por McCoy Tyner e Everything But The Girl - ou seja, de quase tudo, um pouco.
Eu tinha vindo para casa pensando no arroz negro que tinha comido em Milão (visto AQUI), quando, coincidentemente, estava sozinho também. Imaginava em que bases eu conseguiria tingir o arroz da forma como este risotto consegue, deixando-o negro como carvão. E estava louco para uma comidinha reconfortante, visto não ter tido tempo de almoçar. Na geladeira ervilhas frescas, brócolis japonês novinho (prefiro o outro, grandão, mas este era o que tinha), alho-poró,cebolinha...Vou tentar fazer um risotto verde hoje. Acrescentei alguns bouquets de brócolis ao caldo de legumes que já tinha, reduzi um pouco e bati tudo no liquidificador. Coei 3 vezes - a última numa peneira bem fina, para obter um "caldinho verde".
Fiz o risotto como na receita abaixo, mas não consegui transformar meu arroz em verde, apenas "esverdeado".


Assim como também não consegui transformar minha noite em algo não solitário. Descobri que algumas coisas são melhores quando compartilhadas. Risotto, por exemplo. Lógico que o que sobrou eu guardei, para fazer um riso al salto, mas apesar da companhia interessada de Leopoldo (ele não é fotogênico?)

percebi que esta compulsão para o fazer é uma forma nada velada de não se sentir sozinho. Vou ter que criar uma nova dinâmica para minha vida, visto que agora moro um pouco mais longe e também que em média 15 dias do mês estarei sozinho. Pois, se não fizer algo, vou acabar engordando. Ou alguém aqui conhece outro maluco que faz risotto para uma pessoa só, tentando passar o tempo enquanto fala com os cachorros?

Risotto Verdinho
100 gramas de arroz arbóreo
600 ml de caldo de legumes
4 bouquets pequenos de brócolis
4 bouquets mais os talos dos brócolis
1 alho poró em fatias finas
1/3 de xícara de ervilhas frescas
1 dente de alho
1/2 xícara de cebolinha picada
2 colheres (sopa) de parmesão ralado grosso
1 colher (sopa) de manteiga gelada
1 colher (sopa) de azeite de oliva virgem
1 cálice pequeno de vinho do porto branco seco
Junte os talos e 4 bouquets de brócolis ao caldo, cozinhe-os bastante, bata no liquidificador e coe por 3 vezes em peneira muito fina. Reserve.
Refogue o alho poró e o alho no azeite. Misture o arroz, deixe incorporar o azeite ao arroz, derrame o porto branco, espere evaporar o alcool, coloque o caldo aos poucos, esperando quase secar para repor mais caldo. Após 10 minutos coloque os brócolis e a ervilha. Mexa durante 2 minutos, incorpore a manteiga e o parmesão ralado. Verifique e corrija o sal se necessário, acrescente a cebolinha, espere descansar 2 minutos e sirva.
Para mais de uma pessoa.

domingo, 14 de agosto de 2011

one for the road



One for my baby, one for the road...


Escutava Robbie Williams cantando isto no ultimo sábado a tarde, em casa. Relia "O Escaravelho de Ouro" de Poe, e lembrei da tequila que ganhei de minha amiga Karina D. em sua viagem ao México, esperando para ser aberta. Uma tapenade recém feita repousava dentro de um pote hermético,e o pão sueco em lâminas finas casava muito bem com estes parceiros. Cenário perfeito: uma poltrona confortável, bebida ótima e algo para mastigar enquanto lia este conto fantástico. Que me levou a outro conto do mesmo autor, e outro, e quatro tequilas depois, a concentração já não estava tão ...concentrada. Hora de comer algo, mas a cozinha me parece diferente hoje. Seriam os raios de sol neste sábado paulistano, ou os efeitos do aguardente que faziam tudo parecer mais lento, meio difuso...?
Encarei a geladeira, ela me encarou e disse, do alto de sua prepotência metálica : " E aí, está esperando o quê?"... Eu quase respondi para ela...
Uma eternidade se passou enquanto eu abria a geladeira e o freezer, esperando alguma idéia, algum estalo que contribuisse para dissolver minha falta de iniciativa e o inicio de um estranho torpor - fora a súbita vontade de deitar no sofá, deixando a geladeira com suas intimidades expostas.
Eis que de repente vejo um ligeiro brilho metálico, a ponta de uma cápsula que cobria um sauvignon blanc de excelente qualidade, deitada em berço frio, esperando que eu a retirasse deste repouso para dar-lhe corpo através da taça.
E o Cloud Bay, vinho do novo mundo, novamente não me decepcionou. Um bip ao longe me indicava: " falta algo, falta algo...". Era o alarme da geladeira de ultima geração me dizendo ACORDA HOMEM! Você não ia cozinhar, ou prefere uma inscrição on-line na AAA?
De repente, me vejo frente uma panela imensa com água e outra menor, também com água. Enquanto a panela maior ainda nem deu sinais de que está sobre a maior chama do fogão, a menor já está fervendo, e nesta despejo quatro lingüiças de lombo. Enquanto estas cozinham um pouco, apenas para que parte de sua gordura se esvaia e que eu possa tirar-lhes as peles, pico um alho-poró, dois dentes de alho, tomo mais uma taca de vinho e corto em fatias 4 shitakes grandes. Escorro as lingüiças, tiro as peles das mesmas, corto em pedaços e coloco em uma frigideira em fogo baixo, para que derretam um pouco mais de sua gordura.
Derramo azeite na frigideira sobre a lingüiça, tampo e aumento um pouco o fogo. Cadê o parmesão? Tiro um pedaço deste queijo forte, experimento-o e ele casa perfeitamente com mais uma taça do vinho. Coloco Robbie Williams novamente para tocar a música mais conhecida por Frank Sinatra e esqueço um pouco do tempo, até a água da panela grande manifestar sua fúria incandescente. Incorporo os alhos à lingüiça, e cadê o queijo de novo? Como ele foi parar na sala, sobre o meu livro? E onde foi que esconderam o ralador de queijo de casa? E porque esta panela está fervendo sem nada dentro?
Inspire. Espire. Tome uma taça de vinho, e lembre : você ia fazer " una pasta ubriaca " e quem está ubriaco é você, e não o macarrão...
Jogo o sal na panela cheia d´água, ele causa uma reação , levanta-se e diz "estou pronta, anda homem, cadê o spaghetti?"... Deito suavemente meio pacote de spaghetti integral na panela, coloco o shitake na outra, bebo mais um pouco de vinho e...CADÊ O QUEIJO DE NOVO?
Encontro-o com o ralador dentro do armário das panelas. Mistério...
Ralar rapidamente o queijo. Estancar o sangue da ponta do dedo que ralou. Catar um band-aid e não dar bandeira do que está acontecendo. Escorrer o macarrão, mas se lembrar de colocar o band-aid antes. No dedo, não na panela. Derramar uma taça de vinho branco na frigideira. Não, meia taça não pode, coloque uma taça inteira. Deixe evaporar um pouco do álcool na panela, o que está na sua cabeça não vai evaporar tão fácil. Misture a massa e dois punhados fartos do queijo assassino mutilador de dedos. Mexer rapidamente, e o que eu faço com esta salsinha que piquei tão cuidadosamente mesmo? Misturo com a pasta ainda na panela,

sirvo imediatamente, Du, vem comer porque comida quente não espera. Sinto muito, não tem vinho aberto, só um restinho, quase nada...quer coca-cola ou água?







Receita ( Mais ou Menos Sóbria ) de Spaghetti Ubriaco (que em italiano quer dizer alcoolizado, bêbado mesmo...)

250 gramas de spaghetti (usei o integral)
4 colheres de sopa de azeite de oliva virgem
1 alho poró (uso quase até as folhas, não uso apenas a parte branca)
2 dentes de alho
250 gramas de linguiça de lombo
4 shitakes grandes
1 garrafa de vinho branco seco (uma taça para a receita, o resto para o cozinheiro...)
1 xícara de parmesão ralado grosso
1 punhado de salsinha finamente picada
pimenta do reino moída na hora
sal a gosto
Escalde as linguiças e retire-lhe as peles. Enquanto cozinha o macarrão em abundante água fervendo com um pouco de sal, refogue as linguiças, acrescente o alho poró, o alho, o shitake, deite o vinho branco (apenas uma taça, lembre-se!), espere evaporar o álcool, misture a massa já cozida (que deve demorar 8 minutos se for integral, bem menos se não for), misture o parmesão e a salsinha, verifique o sal, moa a pimenta do reino e sirva. Hic!

domingo, 7 de agosto de 2011

NÃO É A MAMÃE!

...
- Wair, decidimos não sair. Vamos ficar aqui batendo papo, enquanto você faz alguma coisa p´ra gente comer.
- Sem chances, senhores. Cheguei de viagem ontem, e não deu tempo de fazer compras.
- E desde quando você não tem nada guardado no armário para uma ocasião destas? Eduardo sempre fala que você entra em depressão quando a geladeira está vazia...
- Em depressão está minha geladeira. Com um vazio interior...
- Tem vinho?
- Claro. Tenho algumas garrafas de Catena Zapata, ótimo Malbec.
- Então, metade do caminho está resolvido!
- Para com isto, criatura! Minha despensa está vazia, a geladeira idem, e ainda não cheguei no milagre da multiplicação dos peixes, pães e o que quer que eu tenha em casa.
- Olha aqui. Tem ovos na geladeira.
- Dois ovos! Nós somos oito - vocês se contentam com 1/4 de ovo cozido?
- Pronto - ovos e bacon. Dá para fazer uma pasta a carbonara...Já comi na sua casa, e lembro que era um dos melhores que já comi até hoje...
- Agradeço o elogio, mas não creio que seja sincero. Vocês estão querendo que eu providencie algo palatável, portanto até aquela minha ultracomentada tentativa infrutífera de copiar o souflèe do Marcel vai ser elogiada agora. Sem chances.
- Wair, tem praticamente um carbonara esperando por você aqui na geladeira, qual o ...
- Primeiro - o verdadeiro carbonara é feito com Pancetta, e não com Bacon. Segundo, com Pecorino, e não com Parmesão, o único queijo disponível neste recinto no momento. Terceiro - somente tenho papardelle integral, ótimo, mas que não vai dar certo com esta receita. Quarto -
- Já sei. Não precisa mais explicar, você está com má vontade mesmo. Um carbonara é tão fácil de fazer...
- Má vontade? Já expliquei que não dá para fazer o carbonara com o material disponível ?
- Como não? Tem ovos, queijo, bacon...
- Posso fazer uma omelete. Para dois. Portanto, até amanhã.
...
- Mas que cara é esta?
- Cara de quem está com vontade de comer um papardelle alla carbonara e o amigo cozinheiro está com frescura. Ok, tudo bom. Vamos beber o vinho, que promete, e sairemos daqui completamente bêbados, tudo porque o "chef" não quis modificar um pouquinho a receita.
- Vocês sempre foram chatos e insistentes assim, e eu nunca tinha percebido, ou receberam alguma entidade que se recusa a subir?
- Vai rolar comida?
- Abram o vinho, coloquem a mesa que eu me viro com o que tenho aqui.

Neste ponto da noite, eu vi que não podia mais contrariar os amigos que já tinham decidido ficar aqui por mais tempo, atualizando os assuntos, como disse um deles. Mas não dava para fazer o que me pediam, uma pasta à carbonara. Porém...a base deste prato inspirou uma variação muito boa. Enquanto o papardelle integral cozinhava em água abundante, piquei o bacon bem pequeno, derreti sua gordura na frigideira quente, adicionei quatro dentes de alho picados, três peperoncinni, um pouco de azeite virgem. Separadamente, misturei os dois ovos com uma xícara de creme de leite fresco, um pouquinho de pimenta do reino branca moída na hora e uma xícara de parmesão ralado.
Retiro a massa da água depois de 9 minutos, passo-a na frigideira grande para misturar o azeite, o bacon e o peperoncino. Despejo nela 3/4 de xícara da água quente em que cozinhou a pasta, transfiro tudo para um bowl de louça previamente aquecido, despejo a mistura de creme de leite e ovos, mexo rapidamente, e sirvo imediatamente.

- Wair, este carbonara apimentado está uma delicia.
- E eu já tentei explicar que isto não é "um carbonara".
- Bem, tem macarrão, ovos, queijo...
- Se um pato nascer num estábulo isto faz dele um cavalo?
- Deixa de ser purista! Agora que cismou que é "chef"...
- Não sou chef, sou cozinheiro. Mas sei a diferença entre a receita original e isto que fiz - ou cometi, sei lá.
- Bem, eu tenho que dizer - este seu Papardelle Alla Non Carbonara está uma delícia.
- Ok. Batizaremos este prato de "questo non é un carbonara", o Wair fica feliz, a gente também, e o tal do Carbonara, que eu nem sei quem é, não reclama...
- Dio Mio, cozinhei para ouvir isto...
- Aproveitando: vai rolar uma sobremesa também? Vi um pedaço de goiabada na geladeira...