food, art & spirits

food, art & spirits

quinta-feira, 7 de junho de 2012

receita para o erro




Algumas fórmulas ou junções nasceram para dar errado. Já dei festas em casa que correram às mil maravilhas, e outras em que fiquei exausto integrando os convidados. Já vi refeições onde todos os pratos eram bons, mas o “conjunto da obra” era uma confusão. Há elementos químicos que não podem nem chegar perto um do outro sem consequências desastrosas. O mesmo acontece na vida – imagine um debate entre...Thomas Mann e Paulo Coelho, por exemplo. Ou um workshop juntando Gretchen e Nana Caymmi...Quem sabe um show de Brad Mehldau com abertura do Restart? Ou uma exposição onde o curador – insano, claro – coloca lado a lado Lucian Freud e (arghh...)Romero Brito...Em suma – receitas perfeitas para o erro.
Pensei nisto ontem à noite, quando comecei a fazer o almoço de hoje – um cozido, simples cozido, atendendo ao pedido... (-Wair, faz um cozido amanhã? É feriado, está chovendo,  a gente não precisa sair de casa, convida alguns amigos,é fácil de fazer...preciso aprender a entender o sentido de "roubada"...). Já tinha feito feijoada, feijoada pernambucana, cassoulet, mas cozido português nunca. Fui direto para a internet, e encontrei algumas dezenas de receitas – todas diferentes. Não apenas diferentes, mas completamente diferentes. Eu insisti na pesquisa, até que vi um vídeo de uma blogueira portuguesa, cujo blog não cito por educação, que mostrava todos os elementos do cozido típico. Sete tipos diferentes de embutidos – sendo alguns bastante desagradáveis aos olhos -, uma orelha de porco, duas couves, um cubinho de caldo de carne, um de caldo de galinha, um de caldo de legumes... Parei na hora. Apelei para minha memória gustativa, e me aventurei no prato. E cheguei à conclusão – cozido é um prato feito para dar errado. Vão carnes de diferentes origens e distintos tempos de cozimento. O mesmo acontece com os legumes e verduras, ou seja – se bobear, o cozinheiro poderá servir no mesmo prato carnes duras e outras desmanchando, legumes crus e outros ultra cozidos, grãos resistentes e...
Imagino os novos chefs dando uma receita destas – 85 gramas de paio cozido à tantos graus por 14 minutos, 73 gramas de folhas de couve orgânica cozidas por 9 minutos, 500 gramas de peito bovino cozido à baixa temperatura por 4 horas e meia...Não dá para ser preciso neste prato. Intuição, prática, tempo, boa vontade e muito muque são os ingredientes básicos para que esta receita obtenha bons resultados. Certas misturas dependem de uma química especial para dar certo, transcendem às leis pré-estabelecidas, requerem ingredientes imprecisos, como os bons relacionamentos. Como tenho uma relação estável de 25 anos, creio ter encontrado, pelo menos neste campo, uma receita que não é mensurável, não tem ordem precisa nem quantidades matemáticas, mas que, até prova em contrário, deu muito certo. Assim como este cozido, consumido e apreciado por seis amigos – mas poderiam ser oito, ou nove, quiçá dez...



COZIDO – uma não receita para 6 ou 8 ou 9 pessoas
100 gr de Toucinho (gordo)de porco de excelente qualidade
500 gr de Costela bovina desossada
500 gr de Peito Bovino
500 gr de Costela suína com osso
 300 gr de Lombo de porco salgado (dessalgado de um dia para o outro)
150 gr de Lingüiça fresca de lombo
200 gr de Lingüiça portuguesa curada
100 gr de Paio
6 dentes de Alho picado
1 cebola picada
4 cebolas inteiras
4 cenouras
2 batatas doces
3 batatas- inglesas
3 bananas da terra
2 maços de couve
18 quiabos
500 gramas de abóbora paulista
2 chuchus
2 cabeças de alho
500 gramas de grão-de-bico cozido
Em uma panela de ferro derreter a gordura do toucinho em fogo baixo, até que ele fique crocante. Reserve.
Em outra panela de fundo grosso, dourar as carnes separadamente, temperar com um pouco de sal e pimenta do reino e ir colocando na panela onde estava o toucinho. Quando todas as carnes estiverem douradas, coloque um pouco de farinha de trigo na panela onde foram douradas, fazer uma espécie de “roux” com a gordura presente na panela e a farinha, acrescentar três litros de água fervente, dissolver a farinha e adicionar às carnes. Ferva as carnes em fogo médio com meia cebola, duas folhas de louro, quatro dentes de alho, um galho de tomilho e ir retirando as carnes mais macias assim que estiverem cozidas. Reserve.
Cozinhar o paio e a lingüiça curada neste mesmo caldo, retirar e reservar junto às carnes. Cozinhe neste caldo os legumes e verduras separadamente, acrescentando água fervente se necesssário. Coloque os legumes em refratário.
Em outra panela, refogar as linguiças frescas sem pele, a meia cebola restante, os dois dentes de alho restantes, e colocar o grão-de-bico cozido. Refogar, adicionar 500 ml de água fervendo, corrigir o sal e a pimenta, até que esteja macios mas resistente ao garfo.
Com metade do caldo restante do cozimento das carnes e legumes, acrescente farinha de mandioca suficiente para fazer um pirão. Separe as carnes, coloque no forno em refratário com papel alumínio até que estejam bem quentes – fazer o mesmo com os legumes.
Regar o caldo restante sobre as carnes e sobre os legumes, adicionar azeite de oliva virgem e servir com o pirão ou com o grão-de-bico. Ou ambos, afinal este não é um prato dogmático...

13 comentários:

  1. Sempre há uma pegadinha no modo de preparo dos cozidos...
    Grande abraço!
    Bergamo

    ResponderExcluir
  2. O senhor pode me convidar para uma dessas festas de Babette, por favor?
    Juro que arrumo a cozinha, lavo os cristais, a porcelana, a prataria, converso com o companheiro de 25 anos e canto uma ária de ópera se precisar

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Combinado! Mas aviso que a ária preferida do companheiro é Casta Diva...abs

      Excluir
    2. Danou-se ! Um barítono cantando Casta Diva vai ser jogar um boi inteiro no cozido!
      Bjs

      Excluir
  3. Oi Wair, sou Margot e resolvi visitar seu blog hoje. Me arrependi. Já devia ter visitado a muito tempo.... Céus é uma degustação literária e gustativa ...rsr. Que delícia... tudo, literalmente gostoso. Adoro cozidos, como com os olhos e seus pratos me saciaram agora, bem como os textos.
    Se permitir, vou voltar sempre.
    Gracias

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Wow, que comentário mais delicioso! Eu espero sim que você volte sempre, gracias!

      Excluir
  4. Pra receitas portuguesas eu sempre consulto o cozinha tradicional portuguesa, de Maria de Lourdes Modesto, raramente busco receitas à internet. O seu cozido me lembrou o pot au feu que faz tempo tenho vontade de fazer.

    ResponderExcluir
  5. Wair, avó, mãe e sogro fazem (a avó fazia...) cozidos maravilhosos. Cada um à sua moda. Em comum, todos cozinham as carnes separadamente. Eu nunca me aventurei. Curiosidade: ao todo quanto tempo de cozimento? Abraço, Rogério.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Rogério, isto é um mistério maior que o Mistério de Fátima...o peito bovino cozinhou por 5 horas. As costelas bovinas desossadas por 50 minutos. O mesmo para as costelas suínas. No total foram 6 horas e meia de fogão...
      Forte abraço!

      Excluir
  6. wair, obrigado pela dica do livro no blog. vou procurar e colocar na minha lista.

    sobre o cozido, pela foto deu vontade de provar!

    abraços!

    ResponderExcluir
  7. opa Wair blz? retribuindo a visita (não tinha visto antes o link pro teu blog). Bem legal e tava pensando nisso hoje como as coisas tem tudo para nao funcionar juntas e nos surpreendem. E, incrivel como as vezes vai atras de uma receitaque aparentemente e simples e vê um monte de lugares complicando algo que e bom pela simplicidade. belo blog.
    http://weekendbestrecipes.wordpress.com/

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Wair,
      Para mim cozido é um dos pratos mais trabalhosos de se fazer, apesar de ser delicioso. De vez em quando me arrisco, mas sempre com receio de não ficar tão bom e com a certeza que deverei estar "inteira" no preparo, senão ele vai passar do ponto.É daqueles pratos para se ficar "no pé do fogão", horas e horas.
      Por sinal você me lembrou que ainda não postei essa receita no Simples Assim.Boa desculpa para faze-lo qualquer dia desses.
      Bje boa semana,
      Lylia

      Excluir
  8. Sinto muita falta de cozido, a cara da minha mãe, ow saudade da comidinha da mainha no Brasil. Quero tentar, mas estou me preparando psicologicamente, tenho todos uns medos kkkkk Beijos

    ResponderExcluir