food, art & spirits

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quarta-feira, 29 de setembro de 2010

little epiphany

Estava do outro lado do mundo. Em Shanghai, para ser mais preciso - acabara de chegar de Beijing,  e estava exausto, pois tinha começado a trabalhar desde que botei os pés em solo chinês, sem nenhum descanso entre a viagem de 27?28 horas e o fuso horário que me roubava quase metade de um dia de minha vida - metade esta que seria teoricamente reposta, em minha volta ao Brasil. Decidi parar para almoçar em um bairro ligeiramente boémio, pois tinha andado o dia todo , tanto, que meus pés pediam descanso, e meus ombros clamavam por uma poltrona, um sofá, qualquer coisa onde pudesse depositar meu esqueleto e minha bolsa imensa, repleta de bugingangas (inclusive uma maquina fotográfica semi-profissional, grande e, consequentemente, pesada). Naquela tarde ensolarada, calor de mais de 35 graus, uma mesa em um daqueles inúmeros restaurantes me parecia a ideia mais próxima do paraíso.
Consegui pedir ao atendente um chá gelado, apontando no cardápio em chinês/inglês o que desejava. Naquele calor tórrido, este pedido me soava o mais apropriado. Qual não foi minha surpresa quando chegou a mesa um bowl de vidro laranja, imenso, contendo em torno de 500 ml de um chá absolutamente aromático, com rodelas de lima e pequenas flores boiando em sua superfície. Achei aquilo totalmente kitsch, e como tenho uma queda para o kitsch, fiquei impressionado com aquela apresentação. Estou acostumado com as novas formas de servir comida, em pratos fundos e imensos, ou então em retangulos de imaculada porcelana branca, mas aquela profusão de cores a minha frente (mais o jet leg...) me estonteou. Nesse momento, um pensamento se sobrepôs aos meus sentidos - se um simples refresco tinha aquela apresentação, como não viriam os pratos principais?
Pedi então uma espécie de fried soft shell crab, pedaços de siri mole empanados, que vieram em uma travessa oval e funda, acompanhados de uma salada de coentro e um molho de pimenta de primeira grandeza - tanto que quase me senti na Bahia, lembrança provocada pelo binómio coentro-pimenta. A essa altura, eu já tinha me livrado da bacia colorida e literalmente enxugava uma cerveja local, otima. Foi então que perdi as estribeiras, e , mesmo com todo aquele calor, pedi um lamem - a típica sopa chinesa, pois o restaurante era famoso por este prato. Alguns minutos depois chega a minha mesa uma imensa tigela de ferro fundido,uma colher de longo cabo de marfim e um par de hashis de madeira lavrada. Nesta tigela, um caldo límpido envolvia largos pedaços de músculo, algumas mini-acelgas ainda crocantes, fatias de raiz de lotus e longos fios de macarrão.Tudo borbulhando...só de ver aquilo, eu já sentia mais calor. Mas a " cara " daquele prato era tão tentadora, tão convidativa, que me atraquei com os hashis e quase uma hora depois, ainda estava sentado observando o movimento, as pessoas correndo de um lado para o outro, o grupo de estudantes europeus em enérgica alegria coletiva, um casal idoso conversando mais a minha frente naquela língua da qual eu falava apenas quatro palavras (sim, não, por favor e obrigado - o básico). Neste momento, tive uma epifania : o que e que me causava aquele bem estar absoluto, aquela sensação de tranquilidade que eu estava sentindo, apesar de estar em um lugar completamente distinto de meu habitat natural, cercado de pessoas que não falavam minha língua (alias, nenhuma língua quase a não ser aquela), e cujas palavras soavam aos meus ouvidos como algo alienígena, por ser incompreensivel ao extremo? Estava longe de tudo, de todos, de minhas coisas e pessoas mais queridas, sozinho, onze horas de fuso horário de minha vida habitual, onze horas adiantado na trajetoria da minha historia, e, mesmo assim, apesar de tudo, em paz, feliz e estranhamente inserido naquele contexto.
E percebi que a alimentação era a base deste sentimento. Alimentar-se das comidas locais, onde quer que você esteja, faz com que se processe uma comunhão com o lugar, com o seu tempo e espaço. Assim como a arte, a culinária tem um carater universalizante (excetuando-se os extremos, claro), que ajuda o homem a se inserir em outras sociedades, países, culturas, por mais longínquas ou distintas. Óbvio que você tem que ser desprovido de preconceitos para que estas oportunidades lhe sejam proporcionadas. Mas esta regra vale para tudo - ate para o amor, não?

Um comentário:

  1. Wair, agosto aqui em Shanghai foi ainda pior: 42°C!

    Qual o nome do restaurante? Me interessou deveras o soft shell crab...

    Abraço
    Rogério

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