food, art & spirits

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sexta-feira, 23 de julho de 2010

Diferenças irreconciliáveis.

Diferenças irreconciliáveis.


Sempre achei este termo radicalmente perigoso. Por mais perfeitos e fundamentados que sejam nossos pontos de vista, não somos, na maioria das vezes, conhecedor da totalidade dos dados que estruturam um argumento. Temos uma certeza quase sempre absoluta, mas o problema da frase está no “quase”...

Pensei primeira nisto depois de vir da China, onde todos me diziam que teria problemas com a comida local. Como já informei em crônica anterior, fui abençoado com o gene da curiosidade gastronômica, o que me impele a cometer deslizes de toda sorte, mas com um resultado de acertos maior do que o oposto. Óbvio que recuso os extremos de certas culinárias, mas sempre estou mais disposto a arriscar do que me entediar – o famoso “Prefiro Toddy ao Tédio”, cujo autor não me recordo, mas concordo plenamente.

Novamente voltei a este pensamento ao ver o filme Julia & Julie, baseado em um livro que, por sua vez, é baseado em uma história real: a admiração de uma jovem moradora de um subúrbio novaiorquino (a Julie do título) pela impagável Julia Child (deliciosamente interpretada no filme pela soberba Meryl Streep), uma aristocrática senhora que decidiu desvendar para as donas de casa norte americanas os segredos da culinária francesa a partir do começo da década de 1960.Sua quase homônima decide, mais de quatro décadas depois, através de seu blog, testar e comentar todas as receitas – mais de 500 – exibidas no livro de Ms. Child – numa seqüência deliciosa de erros e acertos.

Tive a oportunidade de ver Julia – a original – num programa de TV nos longínquos anos 80, ensinando a fazer um peru recheado, prato típico do Thanks Givving. Aquela mulher enorme pegava um peru de proporções imensas com absoluta facilidade, e, batendo nas costas da abatida ave, dizia – “What a nice turkey – don’t you agree?” – e, com absolutamente informalidade, ditava as regras precisas para a realização daquele prato. Sob uma descontração quase brasileira, aquela senhora tipicamente americana, que havia morado por algum tempo na França, ensinava os rígidos ditames da cozinha francesa, e seu livro até hoje é um dos mais vendidos da história neste segmento.

Voltando ao tema, este filme mostra uma cena pequena, porém representativa – a primeira vez na vida em que a blogueira/cozinheira faz – e come – um ovo. Ela tinha a absoluta sensação de que detestava ovo, seu sabor e textura, mesmo sem nunca ter provado um. Por força do compromisso com o blog, acaba executando uma receita de Eggs Beneditine, e se maravilha com o gosto untuoso deste ingrediente básico em quase toda a culinária. Perdido o preconceito contra este alimento tão banal, ficou mais fácil experimentar de tudo.

Julie Powell hoje é uma escritora de sucesso, seu blog ainda tem uma pequena legião de fãs, e gostaria de acreditar que ela continua cozinhando e derrubando suas diferenças irreconciliáveis em relação ao que detestava antes de arriscar-se, mesmo que tenha sido sob a forma de um prosaico ovo. Em suma – preconceitos geram diferenças. Estamos cheios de ambos, necessitamos que diferenças sejam reconciliáveis, que animosidades sejam apaziguadas, que gostos distintos tenham seus defensores, pois se as diferenças porventura nos distanciam, a curiosidade pode nos aproximar.

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