Havia acabado de ler que "O Nascimento da Venus", de Botticelli, fora originalmente encomendado pelos poderosos Medici para dar de presente a um parente próximo, para ser colocado sobre a cabeceira do leito nupcial, e cuja encomenda solicitava especificamente um quadro de tema sensual ou erótico - daí uma das pinturas mais conhecidas do mundo. Representa Vênus,que nasceu adulta e bela. A deusa do amor, da beleza e da sensualidade nasceu do sêmen de Urano (o Céu) caído na espuma do mar - portanto, é uma filha dos elementos água e ar. E este tema e esta pintura, guardada e exibida na Galleria degli Uffizi, em Firenze, proporcionaram um delicioso jantar ontem, em Recife.
Convidado pelos meus amigos Sr. N.B. e Sr. A.M.(na verdade fui bem sutil - vamos jantar lá qualquer dia?), fomos em quatro pessoas ao Kovacic A Cozinha, restaurante privado com menu fechado e dirigido pelo dono (Sr. Kovacic - telefone 81 9612-7776), cujos jantares são inspirados em temas distintos. Já havia ido a este lugar uma vez, convidado pelos mesmos amigos, onde tive uma noite memorável. Desta volta, um jantar em tons mediterrâneos, com os sabores distribuídos entre 7 pratos. Começamos com o pé direito, em uma versão dos italianíssimos arancini - bolinhos feitos com risotto, redondos e dourados como pequenas laranjas - daí seu nome. Nesta versão, ele veio banhado de um caldo de carne e ervas de sabor pungente, ligeiramente cítrico - em perfeita combinação com os bolinhos de arroz.
Em seguida, um prato de aparência estranha, mas que simulava a forma como a Vênus foi concebida - uma tapenade morna de azeitonas pretas com linguado, sobre uma base / massa feita de gergelim. Deliciosa...
O terceiro prato foi o ponto alto da noite - uma moussaka, a tradicional "lasanha" grega, feita de cordeiro, berinjela e bechamel.. Aqui, as fatias de berinjela foram grelhadas com um pouco de gordura de pato, conferindo um sabor mais intenso a este prato. E o tomate veio confitado e tostado, cheio de especiarias, uma pequena e perfeita torre circundada por um bechamel delicioso.
A seguir, um peixinho prosaico, com uma calda adocicada de mel de laranjeiras, com uma batata coberta de alho defumado - pediria este alho para botar em tudo, de tão bom. Acompanhavam folhas cruas de couve rasgadas.
O quinto prato exibia um acompanhamento que foi devorado pelos comensais - um pequeno medalhão de filé, com um molho espesso salpicado com pistache e fatias de pão sírio fritas, sequinhas. Nenhum pingo de gordura, nada indicava que aquelas tiras - que pareciam macarrão cru - haviam provavelmente sido fritas em abundante óleo.
E, last but not least, uma ave - um "guisado" de galinha com sementes de girassol e uvas-passas, novamente contrapondo a ardência com sabores adocicados.
Finalizou uma espécie de bolo/mousse de chocolate, aveia e pistache com uma calda similar a um mingau, com pistaches ralados (como ralaram tanto pistache, não sei...)
Em um lugar simples, com talheres simples e elegante louça branca, uma bela jovem de pés descalços, túnica preta e turbante branco ajudava o serviço, completando nossos copos com água e com os vinhos que havia levado. Uma música insólita e desconhecida tocava ao fundo, e eu ainda conseguia me lembrar da explicação do chef no início, ligando os pratos com a Vênus e com um texto de Garcia Lorca. Saímos felizes, fartos de comida, bebida e histórias. A chuva que caíra lá fora parou no momento em que saímos do restaurante, como que para coroar esta junção de histórias. Uma ótima noite, excelente noite. Tks aos amigos N.B. e A. M., para sempre queridos.