food, art & spirits

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sábado, 23 de junho de 2012

singing & drinking @ the kitchen

Quando adolescente e récem-adulto, pleno de hormônios, acreditava que no futuro o ambiente mais animado de minha casa seria meu quarto. Do alto dos meus confessos 51 anos (ai...dói dizer isto...), afirmo que minhas projeções, assim como a da maioria dos homens que conheço, transformou-se em uma outra realidade - o lugar mais animado de minha casa, desde muito, é minha cozinha. E tenho um estranho hábito que corrobora com esta situação - a primeira coisa que faço, quando vou cozinhar, é "ligar o som" - não consigo disassociar o ato de cozinhar do de ouvir música. Já citei este fato AQUI - na época, era apenas o laptop que continha receitas e as músicas. Mas a cozinha foi adquirindo novos aparelhos, panelas, travessas, formas, e um som novo também, para animar mais ainda este espaço - sempre acompanhado por Leopoldo, meu fiel escudeiro,
eternamente na expectativa de que algum pedaço de comida caia no chão. E música e comida andam paralelos, um interferindo no outro - e Leo sempre atento...






Pensei nisto enquanto ouvia DAVID BOWIE com God Only Knows, e esta melodia me fez parar tudo para usufruir melhor do excelente Meia Pipa, um vinho da Quinta da Bacalhoa, e a voz de Bowie foi a trilha perfeita para um caldo verde - onde a comida e o vinho lusitanos se encontraram com o sotaque britânico não consigo explicar, mas foi uma boa noitada.



A coreografia do video Closer, de NE-YO


seguida de Turn Up The Music de CHRIS BROWN, agitaram a cozinha. pois meu corpo não parava enquanto eu salteava numa wok camarões com vagens e temperos diversos, um prato rápido, bonito e pouco calórico, mas extremamente saboroso, e infinitamente mais elegante do que minha silhueta balançando sob o olhar crítico de Leopoldo.

Tom York , do Radiohead, gemia em RECKONER enquanto eu gemia de verdade pela dor da queimadura em meu braço direito, oriunda do forno muito quente que produziu um excelente frango com tahine - acompanhado de couve-flor igualmente assada com gergelim, e arroz basmati. O sabor do prato suplantou a dor, garanto.

Eleanor Rigby é uma de minhas canções preferidas, e a voz rascante de RAY CHARLES preencheu toda a cozinha, sala e - provavelmente - os apartamentos vizinhos, pois o som estava quase tão alto quanto o cozinheiro, que preparava sobrecoxas de frango com  lentilhas, acompanhado por 1)rhum and coke e 2)duas ou três ou quatro Lighthouse Black 
Beer..."All the lonely people / Where do they all belong..." A noite quase terminou com uma amputação da ponta do polegar direito, obra e graça do álcool e da faca nova - mais um pouco e teria feito frango ao molho pardo...

Uma excepcional cidra - Charlotte Corday, e sua rusticidade elegante, presente de uma amiga, casaram perfeitamente com tomates assados com sal grosso, azeite e tomilho, servidos com pão rústico. Isto mais a gravação de Nature Boy, GEORGE BENSON  versão de 1977, levaram-me a tempos dos quais já não me lembrava.
De vez em quando o clima na cozinha acalma, e nestas horas o som puro de BRAD MEHLDAU busca neste espaço apenas coisas límpidas como as notas deste pianista. Nestas horas, um champagne rosé, ou um Courvoisier, ou algo ainda mais puro, transcendente, superior. Como uma simples taça de San Pellegrino.

(PS - clique nos links ou textos em cinza para ouvir do que estou falando...)


terça-feira, 19 de junho de 2012

lavoisier



Antoine Laurent de Lavoisier cunhou a frase "na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". A frase tem base científica, portanto não sou louco de contradizê-lo. Mas acredito que algumas transformações são verdadeiras criações, as vezes superiores a sua ideia original, outras nem tanto, mas podem vir a ser novas e tão originais quanto seu ponto de origem. Pensava nisto ao ouvir esta gravação de Antony and The Johnsons - na verdade, uma regravação de um original de Beyoncé. Passa ao largo de repetir a receita original (como você pode conferir AQUI), enveredando por uma vertente completamente distinta, com um resultado único e tão criativo quanto à versão da esposa de Mr. Z. Nas artes é comum se ver "releituras", seja sob a forma de homenagem, utilizada apenas como referência ou a pura e simples manifestação da falta de criatividade, apoiada em um elemento conhecido ou de qualidade inconteste.
Minha mãe era partidária desta vertente, pois criava maravilhas aproveitando sobras. O arroz ou a abobrinha refogada que sobravam transformavam-se em deliciosos bolinhos, mais disputados que o prato original. Frutas extremamente maduras viravam doces com a maior facilidade, a polenta feita sempre em imensas porções para acompanhar o frango virava, após dois ou três dias de geladeira, deliciosos palitos empanados em fubá e fritos, a carne de panela que (raramente) sobrava era finamente desfiada para ser incorporada ao molho de tomate do macarrão, e mais uma infinidade de transformações precisas que infelizmente meu HD pessoal ou deletou ou não encontra o arquivo.
E eu também detesto o desperdício, não suporto ver comida estragando - da mesma forma como entro em depressão quando vejo minha geladeira vazia, não aguento ver comida se estragando nela. E do muito que sobrou do cozido do post anterior, novas criações surgiram. O grão de bico virou uma sopa perfeita, com pedacinhos de paio refogados em cebola quase queimada e alho no óleo de gergelim. E as carnes, que foram separadas, tiveram fins igualmente nobres. Mas uma das transformações foi aquele momento em que a inspiração bate, e o resultado aparece. Fiz um purê de batatas com creme de leite, muita manteiga e bastante parmesão ralado. Reservei. Refoguei cebolas e alho numa panela com azeite virgem, coloquei pedaços de bacon gordos para liberar sua gordura em fogo médio, e depois que eles derreteram e largaram um tom dourado ao refogado, juntei farinha de trigo, fiz uma espécie de "roux" e incorporei uma garrafa pequena de excelente cerveja, uma Christoffel Bier Blond, gerando um caldo grosso, encorpado, de tom marrom. Neste caldo, após 3 ou 4 minutos de evaporação, deitei largos pedaços de costela bovina e costela suína do cozido, dois tomates sem pele nem sementes, um talo de aipo, um alho poró em fatias finas e um punhado de cogumelos Paris cortados no meio junto a  alguns ramos de tomilho. Retemperei com sal e pimenta-do-reino, e deixei em fogo baixo por meia hora, reduzindo o caldo. Coloquei as carnes em pequenas caçarolas de louça branca com tampa, cobri com o purê, pedacinhos de manteiga gelada e salpiquei com ricota defumada. Forno alto, et voilá!
  
Algo entre o Sheppherd´s Pie e o escondidinho, oriundo de um cozido português. Acompanhado da mesma cerveja que estava em seu caldo, foi uma transformação de peso. Claro que não falei para ninguém que aquilo era um cozido em pele de escondidinho - preferi dizer que tinha dado um trabalho monstruoso, que as carnes ficaram horas e horas cozinhando em fogo lento, etc. e tal. Afinal, a mentira muitas vezes é apenas uma verdade transformada...

quinta-feira, 7 de junho de 2012

receita para o erro




Algumas fórmulas ou junções nasceram para dar errado. Já dei festas em casa que correram às mil maravilhas, e outras em que fiquei exausto integrando os convidados. Já vi refeições onde todos os pratos eram bons, mas o “conjunto da obra” era uma confusão. Há elementos químicos que não podem nem chegar perto um do outro sem consequências desastrosas. O mesmo acontece na vida – imagine um debate entre...Thomas Mann e Paulo Coelho, por exemplo. Ou um workshop juntando Gretchen e Nana Caymmi...Quem sabe um show de Brad Mehldau com abertura do Restart? Ou uma exposição onde o curador – insano, claro – coloca lado a lado Lucian Freud e (arghh...)Romero Brito...Em suma – receitas perfeitas para o erro.
Pensei nisto ontem à noite, quando comecei a fazer o almoço de hoje – um cozido, simples cozido, atendendo ao pedido... (-Wair, faz um cozido amanhã? É feriado, está chovendo,  a gente não precisa sair de casa, convida alguns amigos,é fácil de fazer...preciso aprender a entender o sentido de "roubada"...). Já tinha feito feijoada, feijoada pernambucana, cassoulet, mas cozido português nunca. Fui direto para a internet, e encontrei algumas dezenas de receitas – todas diferentes. Não apenas diferentes, mas completamente diferentes. Eu insisti na pesquisa, até que vi um vídeo de uma blogueira portuguesa, cujo blog não cito por educação, que mostrava todos os elementos do cozido típico. Sete tipos diferentes de embutidos – sendo alguns bastante desagradáveis aos olhos -, uma orelha de porco, duas couves, um cubinho de caldo de carne, um de caldo de galinha, um de caldo de legumes... Parei na hora. Apelei para minha memória gustativa, e me aventurei no prato. E cheguei à conclusão – cozido é um prato feito para dar errado. Vão carnes de diferentes origens e distintos tempos de cozimento. O mesmo acontece com os legumes e verduras, ou seja – se bobear, o cozinheiro poderá servir no mesmo prato carnes duras e outras desmanchando, legumes crus e outros ultra cozidos, grãos resistentes e...
Imagino os novos chefs dando uma receita destas – 85 gramas de paio cozido à tantos graus por 14 minutos, 73 gramas de folhas de couve orgânica cozidas por 9 minutos, 500 gramas de peito bovino cozido à baixa temperatura por 4 horas e meia...Não dá para ser preciso neste prato. Intuição, prática, tempo, boa vontade e muito muque são os ingredientes básicos para que esta receita obtenha bons resultados. Certas misturas dependem de uma química especial para dar certo, transcendem às leis pré-estabelecidas, requerem ingredientes imprecisos, como os bons relacionamentos. Como tenho uma relação estável de 25 anos, creio ter encontrado, pelo menos neste campo, uma receita que não é mensurável, não tem ordem precisa nem quantidades matemáticas, mas que, até prova em contrário, deu muito certo. Assim como este cozido, consumido e apreciado por seis amigos – mas poderiam ser oito, ou nove, quiçá dez...



COZIDO – uma não receita para 6 ou 8 ou 9 pessoas
100 gr de Toucinho (gordo)de porco de excelente qualidade
500 gr de Costela bovina desossada
500 gr de Peito Bovino
500 gr de Costela suína com osso
 300 gr de Lombo de porco salgado (dessalgado de um dia para o outro)
150 gr de Lingüiça fresca de lombo
200 gr de Lingüiça portuguesa curada
100 gr de Paio
6 dentes de Alho picado
1 cebola picada
4 cebolas inteiras
4 cenouras
2 batatas doces
3 batatas- inglesas
3 bananas da terra
2 maços de couve
18 quiabos
500 gramas de abóbora paulista
2 chuchus
2 cabeças de alho
500 gramas de grão-de-bico cozido
Em uma panela de ferro derreter a gordura do toucinho em fogo baixo, até que ele fique crocante. Reserve.
Em outra panela de fundo grosso, dourar as carnes separadamente, temperar com um pouco de sal e pimenta do reino e ir colocando na panela onde estava o toucinho. Quando todas as carnes estiverem douradas, coloque um pouco de farinha de trigo na panela onde foram douradas, fazer uma espécie de “roux” com a gordura presente na panela e a farinha, acrescentar três litros de água fervente, dissolver a farinha e adicionar às carnes. Ferva as carnes em fogo médio com meia cebola, duas folhas de louro, quatro dentes de alho, um galho de tomilho e ir retirando as carnes mais macias assim que estiverem cozidas. Reserve.
Cozinhar o paio e a lingüiça curada neste mesmo caldo, retirar e reservar junto às carnes. Cozinhe neste caldo os legumes e verduras separadamente, acrescentando água fervente se necesssário. Coloque os legumes em refratário.
Em outra panela, refogar as linguiças frescas sem pele, a meia cebola restante, os dois dentes de alho restantes, e colocar o grão-de-bico cozido. Refogar, adicionar 500 ml de água fervendo, corrigir o sal e a pimenta, até que esteja macios mas resistente ao garfo.
Com metade do caldo restante do cozimento das carnes e legumes, acrescente farinha de mandioca suficiente para fazer um pirão. Separe as carnes, coloque no forno em refratário com papel alumínio até que estejam bem quentes – fazer o mesmo com os legumes.
Regar o caldo restante sobre as carnes e sobre os legumes, adicionar azeite de oliva virgem e servir com o pirão ou com o grão-de-bico. Ou ambos, afinal este não é um prato dogmático...