food, art & spirits

food, art & spirits

sábado, 21 de abril de 2012

princípios

Vou começar com uma negação - não prego a caretice gastronômica, não falo apologia do velho, não sou contrário às novidades nesta área e nem sou contra as correntes atuais deste segmento - eu falei uma negação? Mas confesso estar um pouco cansado de misturas enjoadas. Tudo tem que ter um cítrico e um crocante - o feijão também precisa disto? Para que preciso do cítrico para apurar as minhas papilas gustativas, elas já não deveriam estar apuradas ao longo de minha história? Porque o doce para contrastar o salgado full time - e se eu quiser comer somente o salgado, como fica?
Adoro aquelas costelinhas assadas norte-americanas (supermegalight...), com um molhinho doce/apimentado. Mas traduzir este conceito para tudo me enjoa, confesso. Um bife não é mais apenas um bife, é um filé com redução de seu próprio caldo, cebolas caramelizadas e uma torre de 6 batatas fritas. Só que algo neste bife está mascarado - cadê seu sumo, aquele caldo róseo que saía da carne quando eu cortava o prato feito por minha avó? O picadinho oferecido nos restaurantes tem um molho grosso, ferruginoso, e obviamente saído de uma lata de caldo em pó para dar corpo e volume ao caldo original - e tome sódio, temperos secos, sal e açucar.
Os doces, então, estão ficando estranhos - tudo tem flor de sal atualmente. Eu adoro morangos com açúcar cristal e pimenta vermelha, é um prato simples e perfeito. Mas colocar fleur de sal em todo e qualquer bolo ou mousse, apenas para realçar o açúcar - realça mesmo, ou o rei está nu e ninguém tem coragem de gritar? Toda caipirinha agora tem ou tomilho ou manjericão, provocando uma sensação de estar entre o drink e a salada. Quase todos os pratos de certo restaurante aqui em Recife, de onde escrevo no momento, tem maracujá ou pitanga ou manga, três sabores fortíssimos para contrastar com peixes e crustáceos. Eu sempre tenho a idéia de que estou comendo a sobremesa junto com o prato principal, algo bipolar, indeciso. Será que nosso paladar foi infantil até hoje, e dependia dos teóricos e químicos deste "planeta comida" para nos levar a novos patamares de precisão gastronômica?
Esta semana fiz goiabada em casa, primeira incursão no ramo. Estava um calor absurdo, eu não queria ir à praia no horário de pico, vi umas goiabas pedindo por ação, pesquisei e resolvi fazer uma goiabada em pasta, que era mais fácil. Quase mais fácil, pois tive que sair para comprar mais goiabas maduras e uma colher de pau de cabo bem looooongo, para evitar queimaduras. Uma hora e pouco depois, a mistura de açúcar e goiaba sobre fogo lento dentro de uma panela de ferro deu as caras, e eu adorei ter feito este prato icônico de nossa culinária matuta - e madura, poética. Fico pensando se algum chef dedicado às novas técnicas teria paciência de ficar mexendo um a panela durante um tempo significativo, com apenas dois ingredientes básicos - a goiaba e o açúcar - e dois ingredientes imateriais - o fogo e o tempo. Não, eles iriam cozinhar à baixa temperatura em vácuo, dissolver, aplicar nitrogênio, um pouco de fleur de sal, mudar a aparência, a cor, a textura, apresentar em esferas ou espumas, e esquecer de uma premissa básica - o gosto é um sentido ancestral, assim como o olfato. Eu vou me dedicar doravante a pesquisas sobre pratos básicos, lembrando de uma receita poética de uma bouilabaisse, cujo caldo-base pedia uma porção inexata mas linda - "um fundo de rede de peixes simples".
E coloquei Brad Mehldau, que adoro, para mostrar que apenas com um piano e uma composição magnífica, ele consegue mais sons e tessituras do que muita banda com mil instrumentos. O simples não é simplório, au contraire - é sofisticado, exige altíssima precisão e é muito, muito palatável. 




sábado, 14 de abril de 2012

vermelho, red, rouge

Post parisiense não publicado por erro do usuário....

Paris, 23 Janvier 2012.

Meu francês me fez falta hoje. Ou melhor, corrigindo - a falta do domínio da lingua de Mallarmé se manifestou mais forte hoje. Se eu estivesse estudado mais esta língua que admiro profundamente, conseguiria explicar ao mâitre que a carne estava apenas razoável, pois tinha gordura em demasia (admiro gordura, mas não quando ela é o componente dominante) de uma forma mais "polida" - apesar de ter elogiado as batatas, impecáveis. Pensei em agradecer pelo pote de mostarda Dijon - ô maravilha! - mas fiquei receoso de ser novamente mal interpretado. A chef se mata fazendo um coté du boeuf e eu elogio a mostarda?


Ao meu lado, um senhor provavelmente habituée do lugar, chama o garçom pelo nome e pede um corte especial para sua carne. Ele lê um livro estranhíssimo, me deu vontade de saber exatamente do que se trata - Paris 100 crimes oubliés.

Pensando bem, ele tem cara de serial killer...À direita, uma mulher também sozinha (subitamente me sinto personagem de um quadro de Hoper - um bando de solitários...) com um inusitado vestido vermelho fazendo composée com o sofá e as paredes vermelhas. Inusitado pois sempre considerei que vestidos vermelhos fossem a epítome do sexy, do sedutor, diáfanas personagens passando pelo red carpet. Mas não com minha vizinha de mesa - ela usava um vestido vermelho de lã grossa, mangas longas, discretíssimo decote, comprimento da saia abaixo do joelho e um par de botas de cano alto e salto baixo, quase se mimetizando com o fundo do dècor. A antítese do sexy, que ao sair da mesa foi substituida por um casal igualmente vermelho - o rapaz, um jovem Gerard Depardieu magro de nariz proeminente e cabelos revoltos, portando uma belíssima jaqueta vermelha. Sua acompanhante lembrava uma fresca Charlotte Rampling, de dedos longos e olhos expressivos e aquele cuidadosamente desalinhado cabelo das francesas - parece que foram todas ao coiffeur e receberam uma súbita rajada de vento à porta do salão. Seu cabelo era rubro, como também eram rubras as cortinas do restaurante, os porta-velas e a taça à minha frente, contendo um excepcional  Borgogna.  Eu leio -ou melhor, tento ler -  L´initiation D´un Homme, de John dos Passos.

Envolto em tanto vermelho, me lembro do cantor ruivo Daniel Merriweather, que adoro. E de uma piada particular de uma grande socialite carioca, que morava em um ambiente todo vermelho feito com maestria pelo arquiteto Luiz Fernando Redó. Ao dar uma reunião em casa, recebeu um convidado (não muito elegante em minha opinião) que falou - "...noossa, tudo vermelho? me sinto no próprio inferno!" - no que recebeu de resposta da dona da casa "Você tem razão. E está falando com o diabo em pessoa."
Touché. 

sexta-feira, 6 de abril de 2012

um quase assassinato

- VOCÊ ESTÁ LOUCO?
- Eduardo, relaxa. É seu aniversário...
- Como eu posso relaxar se daqui a pouco posso ter uma cantora morta no chão da sala?
...
40 minutos antes...
- Oi, S! Bem vinda, você está linda - adorei este cabelo curto, novidade, ficou uma garota! (eu ainda estava sendo sincero...)
- Obrigado, Wair. Foi a C que me obrigou a cortar o cabelo, depois de muitos anos...Mas eu não ia perder o aniversário surpresa do Eduardo.
- Ex-surpresa. Ele ficou possesso achando que eu tinha saído mais cedo da loja, apareceu aqui de surpresa me dando uma bronca até perceber que eu estava mexendo um panelão de caranguejo, garçom limpando os copos, tudo ao mesmo tempo agora. Ele está lá no quarto, se arrumando e tentando disfarçar o fora que deu.
- Você que está cozinhando?
- Já está quase tudo pronto, decidi hoje de ultima hora mas deu tempo de fazer tudo. Temos uma sopinha de abóbora com gengibre de entrada, casquinhas de caranguejo e um risotto de figos secos com roquefort. E alguns "engasga-gatos" típicos de Recife, para homenagear o aniversariante.
- Posso te pedir uma coisa?
- Claro, S. Que manda?
- Eu não como nem cebola nem alho...
- Uhn?
- Sou alérgica a cebola e a alho...
- Tudo bem. Na sopa, não tem. No risotto, sinto, mas não vou conseguir fazê-lo sem cebolas, mas na casquinha dou um jeito (aqui eu já começava a mentir...).
- Obrigado. 
Tempo para reflexão: como uma baiana não come cebolas? Ela nunca comeu moqueca, vatapá, caruru e acarajé com aquele vinagretezinho cheio de cebola? Que história era essa, só para me atormentar? Eu outro dia tive um problema com um jantar em casa, pois Eduardo estava numa fase de não comer carne vermelha. Um convidado não comia aves. Eram seis pessoas, fiz uma salada de aspargos com pêras de entrada, depois um souflée de abobrinhas e parmesão e por último um tagliolini negro com frutos do mar e camarões, muitos. E um dos convidados não comia - frutos do mar nem camarões. As chances disto acontecerem num mesmo jantar eram uma em ...um milhão? Um não comia carne, outro ave, outro frutos do mar. Neste caso, acabei fazendo uma massa carbonara rapidinho, mas  no caso da festa, era comida para 30 pessoas. Como resolver?
Voltando...
- Este prato vai especificamente para a S, ok?
- Sim senhor.
- E se ela perguntar se tem cebola ou alho, fale que não, fiz somente para ela.
- Pode deixar.
- Wair, o que é isso?
- É que a S disse que era alérgica a cebola e alho, Du, você acredita?
- E você fez casquinha de caranguejo sem cebola nem alho?
- Claro que não. Mudei a decoração do prato dela para parecer que sim. Mas ela nem vai perceber, pois eu pico tão miudinho que ninguém percebe no meio do caranguejo.
- Fala que você não fez isso.
- Isso o quê? O que você queria que eu fizesse, saísse para comprar caranguejo somente para atender à Sra. S? Eu já avisei que no risotto tem cebolas, mas na sopa não tinha mesmo - apesar de que devo ter colocado no caldo de legumes que estava congelado. Mas ela já tomou a sopa, e nem percebeu - e nem ia, com aquele gengibre todo.
- VOCÊ ESTÁ LOUCO?
- Eduardo, relaxa. É seu aniversário...
- Como eu posso relaxar se daqui a pouco posso ter uma cantora morta no chão da sala?
- Du, ela não é alérgica a cebola nem alho. É alérgica à normalidade, tem que parecer diferente, acima dos mortais, pelo simples fato de ser famosa e ...
- Chama o garçom, peloamordampb! Pede para ele voltar e não servir este prato.
- But it´s too late baby, now it´s too late...Ela já comeu mais da metade.
- Já vejo as manchetes - MPB perde ídolo vítima de violenta reação alérgica à comida servida na casa de amigo.
- Eduardo, dá para ser menos trágico, por favor?
- Ela não está vermelha? Tô achando que ela está meio vermelha...
- Deve ser pelo excesso de vinho. Ou pelo calor da pimenta.
- Seu Wair, a dona S está perguntando se tem mais daquela casquinha de siri sem cebola nem alho.
- Pode falar que tem, eu já preparo e eu mesmo sirvo em minutos.
- WAIR, VOCÊ ESTÁ LOUCO?
- Uhn, ou você está ficando velhinho e esquecido, ou seu repertório está meio limitado, você já me perguntou isso. Relaxa, ela não vai ter nada, eu sei porque sou profundamente alérgico a uma montanha de coisas - sulfa, insetos, mofo - e já fiz todo tipo de teste. Tem teste para detectar alergia à crustáceos, à lactose, até à morango, mas para cebola e alho, não tem. Portanto, não deve ter ninguém com alergia a isso.  E me dá licença que eu vou servir o caranguejo especial.
- Não vai, não. Fala que acabou, que..., 
- Wair, acabou o caranguejo sem cebola? Eu gostei tanto...
- S, eu não tinha te visto! Você está bem, não está sentindo nada?
- Não Eduardo, porquê?
- É que está um calor, e eu estou meio tonto...
- Idade, querido. Relaxa e me dá este prato que está uma delícia. Wair, você me dá a receita depois?
- Com o maior prazer, S. Vai uma pimentinha?




Casquinha de caranguejo  (para 6 pessoas que comam cebola e alho)
- 1 cebola finamente picada
- 3 dentes de alho finamente picados
- 2 colheres de sopa de azeite de dendê
- 3 colheres de sopa de azeite de oliva virgem
- 500 gramas de carne de caranguejo limpa e desfiada
- 2 tomates sem sementes picados em brunoise
- 1 pimentão verde pequeno picado em brunoise
- 1 pimenta dedo-de-moça sem sementes picadinha
- 200 ml de leite de coco
- 2 colheres de sopa de salsinha picada
- 1 colher de sopa de coentro picado
- sal e pimenta do reino a gosto
- 1 xícara de farinha de mandioca grossa
- 2 colheres de sopa de azeite de dendê

Coloque o azeite e o dendê juntos, aqueça ligeiramente, e refogue a cebola e o alho. Incorpore a carne de caranguejo, uma pitada de sal, mexa e tampe. Deixe em fogo brando por 15 minutos, soltará um pouco de água e depois vai secar. Acrescente os tomates, o pimentão e a pimenta. Mexa novamente, tampe por 10 minutos, em fogo baixo. Acrescente o leite de coco, a salsinha e o coentro,  corrija o sal e a pimenta.
Em uma frigideira, aqueça o dendê restante, e quando estiver quente, coloque a farinha de mandioca e mexa até ela ficar amarela. Sirva sobre o caranguejo.