food, art & spirits

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terça-feira, 19 de junho de 2012

lavoisier



Antoine Laurent de Lavoisier cunhou a frase "na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". A frase tem base científica, portanto não sou louco de contradizê-lo. Mas acredito que algumas transformações são verdadeiras criações, as vezes superiores a sua ideia original, outras nem tanto, mas podem vir a ser novas e tão originais quanto seu ponto de origem. Pensava nisto ao ouvir esta gravação de Antony and The Johnsons - na verdade, uma regravação de um original de Beyoncé. Passa ao largo de repetir a receita original (como você pode conferir AQUI), enveredando por uma vertente completamente distinta, com um resultado único e tão criativo quanto à versão da esposa de Mr. Z. Nas artes é comum se ver "releituras", seja sob a forma de homenagem, utilizada apenas como referência ou a pura e simples manifestação da falta de criatividade, apoiada em um elemento conhecido ou de qualidade inconteste.
Minha mãe era partidária desta vertente, pois criava maravilhas aproveitando sobras. O arroz ou a abobrinha refogada que sobravam transformavam-se em deliciosos bolinhos, mais disputados que o prato original. Frutas extremamente maduras viravam doces com a maior facilidade, a polenta feita sempre em imensas porções para acompanhar o frango virava, após dois ou três dias de geladeira, deliciosos palitos empanados em fubá e fritos, a carne de panela que (raramente) sobrava era finamente desfiada para ser incorporada ao molho de tomate do macarrão, e mais uma infinidade de transformações precisas que infelizmente meu HD pessoal ou deletou ou não encontra o arquivo.
E eu também detesto o desperdício, não suporto ver comida estragando - da mesma forma como entro em depressão quando vejo minha geladeira vazia, não aguento ver comida se estragando nela. E do muito que sobrou do cozido do post anterior, novas criações surgiram. O grão de bico virou uma sopa perfeita, com pedacinhos de paio refogados em cebola quase queimada e alho no óleo de gergelim. E as carnes, que foram separadas, tiveram fins igualmente nobres. Mas uma das transformações foi aquele momento em que a inspiração bate, e o resultado aparece. Fiz um purê de batatas com creme de leite, muita manteiga e bastante parmesão ralado. Reservei. Refoguei cebolas e alho numa panela com azeite virgem, coloquei pedaços de bacon gordos para liberar sua gordura em fogo médio, e depois que eles derreteram e largaram um tom dourado ao refogado, juntei farinha de trigo, fiz uma espécie de "roux" e incorporei uma garrafa pequena de excelente cerveja, uma Christoffel Bier Blond, gerando um caldo grosso, encorpado, de tom marrom. Neste caldo, após 3 ou 4 minutos de evaporação, deitei largos pedaços de costela bovina e costela suína do cozido, dois tomates sem pele nem sementes, um talo de aipo, um alho poró em fatias finas e um punhado de cogumelos Paris cortados no meio junto a  alguns ramos de tomilho. Retemperei com sal e pimenta-do-reino, e deixei em fogo baixo por meia hora, reduzindo o caldo. Coloquei as carnes em pequenas caçarolas de louça branca com tampa, cobri com o purê, pedacinhos de manteiga gelada e salpiquei com ricota defumada. Forno alto, et voilá!
  
Algo entre o Sheppherd´s Pie e o escondidinho, oriundo de um cozido português. Acompanhado da mesma cerveja que estava em seu caldo, foi uma transformação de peso. Claro que não falei para ninguém que aquilo era um cozido em pele de escondidinho - preferi dizer que tinha dado um trabalho monstruoso, que as carnes ficaram horas e horas cozinhando em fogo lento, etc. e tal. Afinal, a mentira muitas vezes é apenas uma verdade transformada...

9 comentários:

  1. Estou deveras desanimado.....
    Para fazer uma torta dessa eu vou ter de fazer o cozido? rsrsrs

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    1. Não...a receita original dá tanto trabalho quanto o cozido, mas nao sei no que transformar ela depois...abs!

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    2. Por favor manda a receita original!
      Pratos Lavoisier é desejo em estado puro para mim!
      Bjs

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  2. que delícia! está com uma "cara" fantástica. também sou adepta de transformar comida em outras, mas esta nem parece feita de sobras, parabéns. abs
    leila renato

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  3. Ahhh Wair, me dê seu endereço. Quero comprar a casa ao lado e ser sua vizinha...eternamente! Minha boca está cheia d'água e minha barriga pedindo o "falso escondidinho". Isso é maldade.

    Você escreve lindamente. Me senti cozinhando, junto contigo.
    Gracias

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    1. Margot, se você mora em São Paulo, podemos marcar para qualquer dia você provar que talvez eu escreva melhor do que cozinho, mas garanto que - no mínimo - daremos ótimas risadas. Abraços e obrigado.

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  4. vc está certíssimo ... o reciclo qdo envoltos em criatividade podem se constituir em uma verdadeira superação do original ... acho fantástico mesmo ...

    obrigado pelo carinho por lá ...

    bjão

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  5. ah! esqueci ... seguindo e linkando ... anotei a receita para a marida fazer para mim ... afinal uma boa marida tem q ser assim né? sempre agradando e bem o parceiro ... rs ... a interpretação é fantástica ... deliciosamente SUPIMPA ...

    bjão

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