food, art & spirits

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sábado, 3 de novembro de 2012

a memória e o gosto


Meu pai era o que comumente se chamava de "bom de garfo". E gostava de ir sempre nos mesmos restaurantes, pedir praticamente os mesmos pratos, pois detestava a margem para o erro (eu realmente nasci seu oposto também nisto...). As vezes se aventurava na cozinha, fazendo algumas coisas que não davam muito trabalho, mas fazia o básico impecavelmente bem feito. Seu torresmo (comentei isto outro dia na Nina Horta) era de uma precisão absoluta - tamanho e crocância, tudo perfeitamente bem executado. Nunca me aventurei a fazer isto, primeiro porque exigia uns panelões imensos e uma cozinha muito ventilada; segundo, porque não tenho a coragem de repetir uma receita que era perfeita, e dar errado - prefiro continuar na tentativa de achar um no mínimo parecido entre os restaurantes que frequento, no meio das inúmeras feijoadas que comi, mas até hoje...nada. 
Ele também fazia um doce de abóbora de comer rezando. E não dava muito trabalho, nem era nada medido - cubos de abóbora, açúcar, um pedacinho de canela em pau, dois ou três cravos, panela com fogo médio tampada, depois de algumas horas jogava o coco ralado, e  estava pronto. Eu comia ainda quente, com fartos pedaços de queijo forte, e no dia seguinte ainda virava um sanduíche criminoso de tão calórico. Outro dia me deparei com uma abóbora bonita, peguei uma receita deste doce na internet, medi tudo, pesei tudo, cubos quase do mesmo tamanho, fogão com temperatura regulada...e não cheguei aos pés do doce que meu pai fazia. Ou a abóbora era insípida, ou o cozinheiro errou a mão mesmo. Ficou uma sobremesa levinha, levinha, quase uma nuvem cor de coral, mas...nem uma pálida sombra do que me era oferecido quando criança. 
Alguns ensinamentos deveriam ser repassados de forma obrigatória para a posteridade - a receita perfeita, o melhor canal de comunicação entre opostos, os processos de ajustamento de uma sociedade democrática, a facilidade de compor rimas e belezas como Chico Buarque - isto tudo deveria ser transmitido ao maior número possível de pessoas, sob o risco de desaparecerem no futuro distante. Lembro do cheiro de galinha depenando, pois eu e meus primos éramos os responsáveis por esta função nos almoços dominicais na casa de minha avó (imagine a cena - matar uma galinha, depenar, limpar, eviscerar, cozinhar e servir tudo num mesmo dia - ou melhor, numa mesma manhã!). Do trabalho de passar as coxinhas na farinha, no ovo e na farinha novamente, antes de fritar. De distinguir a goiaba madura da não tão madura ainda no pé, nas tardes em Santos. De catar o feijão, escolher o arroz, debulhar a ervilha, limpar sardinhas e acender a brasa da churrasqueira e mantê-la na altura e temperatura certas para a delicadeza deste peixe. De rechear e dobras os capeletti, e passar uma mesa inteira de gnocchi no garfo para ele adquirir a curvinha perfeita para melhor receber o molho. Não repassei isto para ninguém, assim como meu pai não me ensinou a forma de fazer o doce perfeito. Mas será que hoje alguém se interessaria em algo que não vem no visor de um tablet ou smart-phone?

Doce de abóbora com coco
  • 1 kg de abóbora de pescoço, descascada e cortada em cubos 1/2 quilo de açúcar
  • 2 pauzinhos de canela
  • 6 cravos-da-índia
  • 1/2 xícara de coco ralado 
Numa panela grande, coloque a abóbora, o açúcar, a canela e os cravos. Leve ao fogo médio, mexendo sempre, até a abóbora começar a soltar água e umedecer o açúcar. A partir daí, abaixe o fogo e vá mexendo de vez em quando. Quando a abóbora tiver desmanchado e a calda tiver engrossado um pouco (leva uns 35 a 45 minutos), junte o coco e deixe mais uns 10 minutos em fogo baixo. Deixe esfriar e guarde em pote com tampa na geladeira.

22 comentários:

  1. detalhes meros detalhes ... kkkkkkkkkkkkkkkkkk

    bjão querido

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    1. Meu mestre Mies van Der Hoe pregava " God is in details".
      Bjs!,

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  2. Eu adoraria aprender a cozinhar desse jeito "analógico". Mesmo.

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    1. São dois. Ainda vou queimar muito pano de prato neste processo...

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  3. Penso como você... minha mãe era(hoje já não consegue mais) biscoiteira de primeira...e eu não amasso nem pão-de-queijo. Fazia doces, costurava, limpava galinhas, porcos e até vacas se necessário! Não que hoje precisemos disso, mas as "finesses" da cozinha... ahhh!! quem dera eu tivesse 1/10 da que ela tinha...
    abraços Wair...e doce de abobora com côco e tudo de bom.

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  4. A "cozinha do afeto" é impossível de ser recriada, não é mesmo?
    Grande abraço!
    Marcelo

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    1. E é por isso que elame encanta a do que as tecniidades de Ferran, René e Myrvold - por sua aboluta impossibildade de copia. Abs teacher!

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  5. Pode não ter recebido a receita infálivel sobre a elaboração do doce de abóbora c/ coco, que adoro, mas reproduziu, com precisão e delicadeza, a apresentação da iguaria numa compoteira de cristal, imagem que me remete aos passeios de infância na casa da vó.
    Emocionada com a lembrança, usei seu recipiente, ora com figo bem verde e da espécie miúda, mergulhado numa calda grossa, ora com goiabas vermelhas, meus doces prediletos, te gustas?
    Bjk



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  6. O derradeiro comentário é da Mia!


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  7. Te entendo. Muito do que sei cozinhar hoje, aprendi com minha avó materna, que ensinava fazendo e sem receita...sempre uma xícara e mais um pouco disso ou daquilo. E tem coisas que infelizmente ela levou junto quando se foi, fica na minha memória, e nem adianta procurar igual, muitas vezes ela inventava na hora...e dava certo.
    Acredito que cozinhar seja uma demonstração de amor...por isso que nos dias que não estou bom, nem me atrevo...sempre sai errado...mesmo seguindo as receitas a risca.
    Um grande abraço.

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    1. Rapaz, é isso mesmo. Tem receitas que não conseguimos repetir pois falta um pouco de algo indescritível. forte abraço.

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  8. este post me trouxe a tona um doce que minha mãe faz que é maravilhoso e que um dia eu conto no meu blog a respeito
    beijos

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  9. Wair:

    Tem um doce que comemos recentemente em uma festa aqui em casa que nos deixou todos com um nó no estômago e uma saudade inevitável ao lembrarmos da nossa amada vózinha. Ela fazia uvas cobertas, uvas verdes cobertas com uma camada de leite condensado e açucar..delicioso mesmo.

    Linda semana e apareça no Lua hein...rs saudades de você. Abraços.

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  10. Deu até uma nostalgia aqui... adorei a receitchêêênha... Hugz, Wair! Boa semana!

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  11. Ainda esses tempos atrás, estava falando com a minha mãe, da importância do doce de "laranja cavalo" que ela, e só ela faz, e que é minha sobremesa predileta ... preciso aprender a fazer, mas esse tipo de laranja também é muito dificil de achar, já que é um tipo de laranja que não se extrai suco ou se chupa ...
    Bem legal sua história com seu pai, e concordo com vc, algumas coisas não poderiam se perder ... mas hoje em dia ...
    Abraço !

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  12. Será que funciona bem com a abóbora moranga?

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  13. Uma pena perder tantas receitas deliciosas, afinal," comer é pertencer"!!!! Virei, mesmo sua fã. Beijo, Ivana

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